Rotina de bordo. E como é que eu faço pra tomar um banho e dormir neste navio dos infernos?!
...com uns treze anos de idade (já era louco por aviões) eu li sobre a batalha de Midway e me apaixonei por porta-aviões. Bom, paixão e romantismo podem ser despertados e alimentados por leitura e filmes, por certo, e era o que eu tinha. Eles tem o condão de alimentar fantasias. Mas, filmes e textos são discursos (hoje está na moda dizer "narrativas"), portanto, cuidado! Ali, nada tem cheiro, nada representa privações, nada te faz suar ou sentir medo e dor. Conceda o leitor que, paixão e romantismo, de início, alimentam-se inevitavelmente da ingenuidade, principalmente nos mais novos. Tudo são projeções, nada foi confrontado com a experiência, nada é, de fato, REAL (por isso é tão importante ter um cuidado mortal com quem vive de receber votos. Ou de quem vive de religião. São os mestres na exploração de discursos. E da ingenuidade, portanto). Seja como for, e como não me deixam mentir os (outros além de mim) mais velhos, as experiências reais haverão de, se não dissipar, pelo menos, aparar algumas camadas de projeções, de idealizações com as quais todos iniciamos nossas vidas.
Em MAI96 eu fiz esta foto do meu amigo, meu irmão, Leal, claro, por gozação, mas ela demostra bem o objeto deste artigo. |
É verdade, também, que, como que num processo de volta à origem, o passar do tempo atenua as experiências, por mais difíceis que tenham sido. Claro, sem querer iniciar uma incursão pelos campos das neurociências, é preciso reconhecer que o passar dos anos e a seletividade da memória podem recriar imagens românticas e simplificadas do passado (um bom motivo para, além de políticos e pastores, ter cuidado com o discurso dos historiadores, também).
Seja como for, as lições da maturidade me permitem afirmar ao egrégio leitor que, se os porta-aviões são apaixonantes em Top Gun, ou As pontes de Toko-Ri, eles são, primordialmente, no mundo real, um lugar de cansaços! Que veterano do Primeiro Grupo de Aviação Embarcada não vai lembrar daqueles sonos irreprimíveis, durante e depois das longas horas de operações aéreas? Uma vez eu dormi sobre uma linha de incêndio, arrumada sobre o convés de voo, à ré da ilha, enquanto os nossos aviões pousavam e decolavam, a não sei que horas da noite. As coisas nunca param. Em alguns exercícios, as refeições eram servidas em postos de combate. Uma boa alma poderia perguntar: "Ora, mas em algum momento o voo tem que terminar! Eventualmente, os aviões eram recolhidos!" Por certo! (eu teria que admitir). Nada obstante, o "pós-voo", pra quem voava, por exemplo, incluía o debrifieng do Oficial Sinalizador de Pouso (OSP), o debriefing do voo, propriamente dito, e o retorno da tripulação às suas atividades rotineiras, administrativas, ou, de manutenção dos aviões, porque as necessidades cotidianas da fração embarcada, homens e máquinas, continuavam presentes, e não esperavam pelo "estresse" de ninguém. O Coronel Souza Lima, que chegou a comandar o Grupo na sua hora mais escura, testemunhou o cansaço das tripulações: "Já dormi [dentro do P-16] com a aeronave na trilha da catapulta, aguardando o lançamento. Descansar sempre que possível durante operações prolongadas."
E além disso, nós da embarcada tínhamos que cumprir nossas obrigações enquanto tripulantes do Minas Gerais, também, bem lembrado pelo Wiliam Barros:
"Nas intermináveis Operações H24 e H48 [operações contínuas, por 24, 48 horas]... Haja sono. Confesso que sempre era uma aventura conviver dentro do NAeL [NAeL: Navio Aeródromo Ligeiro, a designação formal do Minas Gerais] desde as coisas mais simples, como o banho que foi citado, até as intermináveis operações Catrapo. Deve-se acrescentar também que existia um outro 'tormento', que era a escala de faina de gêneros, da Marinha [quando se punham os carregamentos de víveres] para dentro do NAeL; escala esta que ocorria nos portos, onde o navio parava, e justamente quando a rapaziada dava os seus 'rasantes' nos locais de natureza duvidosa."
De fato, as coisas que tinham que ser feitas, relativas à rotina de uma unidade aérea continuavam lá, aguardando serem BEM feitas. A rigor, é bom que se diga, embarcávamos com pessoal minimamente capaz de algum revezamento, coisa que nem sempre funcionava muito, por exemplo, quando aparecia uma pane mais "cabeluda" num dos aviões. Então, não existia escala; dormidos e não dormidos tinham que se arranjar para colocar os aviões em condições de voo para as próximas missões, ou, "eventos", como a Marinha as nominava; o voo das 04:00Z era o "evento" das 04:00Z.
Para o pessoal da manutenção em geral, mas principalmente, para os encarregados do turno da noite, além do descanso, o ponto crucial em que se apoiava a vida a bordo era o banho. Uma vez que os aviões baixassem ao hangar com alguma pane, não havia parada até que o problema estivesse resolvido. Podia ser uma pane mecânica, mas o pessoal de Sistemas Elétricos, Sistemas Hidráulicos, Comunicações, que tivessem equipamentos associados ao problema ficavam por lá. E vice-versa. Inapelavelmente. Que madrugadas longas! Quando amanhecia (o que só se percebia pelo relógio) tu já estavas pedindo pra Jesus te levar... e o banho, a princípio, era só as 16:00!
A água potável no Minas Gerais era absolutamente, rigorosamente, controlada para a tripulação. Os oficiais desfrutavam de maiores facilidades, mas o restante dos homens, a rigor, tinha dois intervalos para banho, um de quinze, e outro de dez minutos. Formava-se uma massa de gente comprimida nos banheiros; um sujeito ia pra baixo do chuveiro para se molhar, saia do box para se ensaboar e esfregar, enquanto outros tomavam o seu lugar sob a água. Aí era uma questão de oportunidade voltar para baixo d´água para enxaguar-se, e sair dali para usar a toalha. Hoje nós rimos disso mas... bom, naquela época, nós ríamos também! especialmente quando o cara ensaboado, querendo dar o fora dali gritava "REVEZA!", para quem estivesse se demorando demais sob a água. Claro, também era o máximo ouvir alguém chamar por um amigo, para que este juntasse o seu sabonete do chão! Como compensação, a temperatura e a pressão da água eram sempre uma delícia, é preciso admitir. Era realmente um luxo quando se podia dispor de alguma demora a mais sob as duchas.
Este documento dá bem uma ideia da perpetuidade do problema dos banhos para a Manutenção do 1º GAE quando embarcada no Minas. |
Mas, como eu dizia no início do artigo, o tempo tem um papel interessante de pavimentação das experiências, às vezes difíceis, pelas quais as pessoas passam. Não são exceção a este fenômeno os homens da Embarcada. A vida a bordo do Minas Gerais não era fácil, mas os veteranos hoje são muito mais condescendentes com aquelas experiências. O então Sargento Oliveira registrou na nossa página dos veteranos: "[a] gente reclamava, mas que dá saudades, dá!" Da mesma forma escreveu o Linaus: "Lembro ter dormido dentro da cabine e acordei de madrugada com um visual inesquecível das estrelas sobre minha cabeça, através da escotilha do P-16." Ao contrário do Oliveira, eu não reclamava à época, talvez romanceasse aquelas experiências, aquilo que era a realização dos meus sonhos de guri: eu tinha um porta-aviões só pra mim... na verdade eu acho que só me diverti, e hoje, sinto saudades do meu navio. Continuo apaixonado... ou, ingênuo.
Baita texto! Deu pra "sentir" o drama da vida no NAeL.
ResponderExcluirBravo, Luís!
...muito obrigado pelo carinho de sempre, Gustavo...
ExcluirViajei nos "perrengues" agora...rsrs
ResponderExcluir...o Blog está aí pra isso, William, pra rirmos e lembrarmos não necessariamente nesta ordem. Abraços...
ExcluirBelíssimo texto, meu irmão! A fotografia que tirou de mim, trouxe de volta lembranças sobre quão reparador poderia ser um cochilo no nosso briefing, desde que encontrasse uma posição confortável.
Excluir...caramba, Leal! A tua foto prova exatamente que não se precisava nem de um "lugar confortável"! KKKK...
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